O FIM POR UM FIO
Autor: João Antonio
Nos confins das eras, escondidos por entre as lacunas da
gênese, orbitavam na atmosfera humana dois poderosos sóis. Um, a fonte de todo
orgulho e o outro a candura da caridade. Situados em lados opostos, empenhavam-se
para irradiar suas energias vibratórias sobre os habitantes do planeta Gaia. E mantinham um esforço hercúleo para
conviverem lado a lado, no entanto sabiam que para existirem plenamente era
preciso atenuar a força de um sobre o outro.
Foram incontáveis os momentos na história daquele planeta
que Candura cedeu seu espaço de atuação ao companheiro, devido, principalmente,
a necessidade de utilizar-se da força oposta de forma estratégica. Ele era
extremamente paciente, sabia esperar, não reagia ante a vilania do outro sol,
Passageiro, como o chamava, e ficava tecendo na roca os fios prateados de sua
túnica enquanto dava tempo ao tempo.
Lembro-me bem o dia, ainda na pré-história, quando
Passageiro abriu um sorriso joaquiniano, quer dizer, jocoso e olhou de forma sinuosa
em meio às pestanas superiores para Candura que o respondeu com doçura,
compreendendo a intenção maléfica e providencial de seu amigo.
— Tenho algo para lhe informar meu caro Cacá.— Era assim que
Passageiro chamava Candura — Sabe aquela
invenção que você tanto trabalhou para que o homem a produzisse, as ferramentas
de cultivo que facilitariam a geração de alimentos, eu as incrementei,
acrescentei algo a mais nessa relação de produção, tornei-a mais útil.
Afetuoso como sempre, Candura se manteve tranqüilo ante a
revelação que se desvendava, economizando o assombro, inquiriu.
— Pois é, qual?
— Regularizei a posse, criei a propriedade privada — suas
palavras eram marcadas por uma suposta calma, seguida de uma ligeira pausa com
a intenção de avaliar o impacto que supunha ter. Contrafeito, continuou:
—Afinal, não fazem sentido os meios de produção serem um bem
comum. Essa medida permite um salto a inadiável organização da sociedade, uma nova
ordem nas relações entre os homens para que eles possam se entenderem melhor.
De agora em diante os meios de produção devem pertencer ao indivíduo e não ao
coletivo, aquele que for mais esperto, inteligente, segundo a lei natural da
sobrevivência no reino animal, sobressai perante os outros conferindo-lhe
poder, contribuindo, desse modo, para o crescimento do planeta.
Nesse instante, o olhar do sol bondoso se irradia como a contemplar
as reminiscências do infinito etéreo, disse serenamente.
— Não me causa espanto, já contávamos com isso e deslumbro o
porvir, inicia-se a escalada da exploração do homem pelo homem, e nesse sentido,
já estou tomando as providências, enviarei ao planeta Alfred Russel Wallace
para tratar da evolução da espécie o qual você se reporta no seu discurso.
— Acredito que sua tese espiritualista que justifica a
evolução da espécie a “intervenção de causas não identificadas” não será páreo
para o argumento da “seleção sexual”, ou seja a seleção natural de Darwin —
sorri sem emitir som e arremata — É tudo um tanto tragicômico.
Num impulso reflexo pleno de entusiasmo o radioso sol
Passageiro que sofre de problemas no sacro e coluna se acomodou no encosto de
seu trono relaxando os ossos do quadril e continuou:
— A concentração de riqueza permite investimentos de grande monta,
potencializando a sociedade, o que não poderia acontecer se toda a riqueza fosse
distribuída igualitariamente. Detendo os meios de produção, os mais espertos acumularão
riquezas e negociarão seus excedentes movimentando a sociedade, conferindo-lhe
condições materiais para reinvestir. Lembre-se que um pouco de egoísmo serve de
aperitivo para abrir o apetite das iniciativas.
Chegando a esse ponto da conversação, o Sol Caridade utilizou-se
de sua ironia radiosa.
— Entendo, a embriagante vantagem para si e os seus.
— Percebo que você começa a me compreender — Disse Passageiro
cheio de si, afogando-se em sua grandeza
sufocante.
Consciente de si e de sua condição, Candura permaneceu
inalterado à provocação, não titubeou e lembrou a seu par de natureza estelar:
— Faz parte de meu ofício conviver com o diferente. Mas, não
fique tão contente, tomarei as providências cabíveis para minhas próximas
irradiações em direção à Gaia.
O Sol generoso parou de tecer seus fios e tirou algo de sua
túnica resplandecente, um objeto que lembrava a ideia de um telefone móvel, acionando-o,
um holograma de luz semi condensada fez-se surgir a sua frente formando uma
imagem de um rosto em miniatura. Tudo era acompanhado com a devida curiosidade
por parte de Passageiro, apesar de que a parafernália ainda estava em teste e
não emitia o som da voz. A comunicação com o interlocutor dava-se através da
leitura labial da imagem, recurso que Passageiro não dominava.
— Saudações caro Alnix! (...) É, estou ciente dos últimos acontecimentos,
fato, este, que justifica esse “teleograma.” (...) Permanecemos a postos e atento.
(...) Como? (...) Sim, sim, eu digo.
O rosto-imagem virou de cabeça para baixo, perdendo um pouco
o controle. Caridade sorriu e voltando-se para seu companheiro, disse:
— Seu anjo guardião manda lembranças e disse que está no seu
pé, acompanhando cada passo.
— O seu humor é muito sem graça Cacá. — retrucou enjoado
Passageiro, enquanto providenciava um cubóide-book para fazer uma sondagem.
— Essa é a maneira dele agradecer — Caridade disse com um
sorriso radioso, retomando a conversação. — Gostaria de falar com o plantonista
do ministério da reencarnação, é que já fechei a lista do primeiro escalão que
reencarnará em Gaia nos próximos séculos, séculos, amém. (...) Certo, aguardo.
O diálogo mantido por Caridade era acompanhado por Passageiro
que demonstrava grande interesse, aguardando ansiosamente pelo desfecho da
conversa.
— Saudações, meu querido! (...) Face aos últimos acontecimentos trago
boas novas. (...) Isso mesmo... Já estou
com a lista dos futuros reencarnantes. Vou lhe repassar alguns nomes que completarão
a relação final. Depois eu envio a lista completa com o segundo escalão e as
datas. (...) Certo... Gostaria que vocês incluíssem aí os nome de Crishna (...)
C-r-i-s-h-n-a, o avatar de luz, o termo vai ser escrito na língua sânscrito. Na sequência vêm Buda, o iluminado, Sócrates e
o grande Jesus Cristo, esse vai dividir a história em antes e depois dele.
Acrescente, também, Santo Agostinho (...) Sim, é importante (...) Sobre a
revolução Francesa... (...) Não, não ...
— Epa! — Interrompe veementemente o sol oposto — a Revolução
Francesa me pertence, é o momento culminante da ascensão da burguesia a
premissa do futuro capitalismo selvagem.
— ... não, como eu estava dizendo, não é meu departamento,
mas sugira ao setor da neurolinguística para adotar o slogan “egalité,
fraternité e liberté”, essa ideia sobreviverá por largos séculos. No período do
iluminismo inclua Allan Kardec e no quadro da revolução industrial Karl Marx...
— Não a cre di to! — enfatizou o Sol Passageiro indignado — Só
pode ser sabotagem, ele quer se apoderar de tudo. Mas, não adianta, não, esse último
aí é materialista ao extremo, vai se dar mal.
— Convenhamos, se Jesus sugere repartir os pães, Marx
concretiza a ideia e o apesar dos pesares no pacote fica por sua conta.
— É revoltante! Trata de apropriação indevida, você está
querendo tomar meu lugar. Mas, isso não vai ficar assim! — Levantou-se praguejando
a dor no cóccix, colocou os fones nos ouvidos e disse:
— Cadê você, já encontrou aquele cara do bigodinho? Vá à dimensão onde ficam os sofredores, desequilibrados, lá no
umbral. (...) Não? (...) Que cara mais
difícil. Vasculhe cada milímetro, mova-se, desça aos abismos e não
quero saber se você tem medo de altura, precisamos providenciar uma
reencarnação compulsória, ele vai ser peça importante na primeira metade do
século XX. Te cuida, sua batata tá assando! — virou-se para Candura — Depois
não se arrependa.
Apesar de todo melindre do companheiro, o Sol de bondade permaneceu
sereno, relacionando os nomes da lista.
— Não esqueça de
Chico Xavier, Madre Tereza...
Meus amigos, essa é uma história sem fim a caminho da
eternidade. Mas, num futuro próximo, tão próximo quanto hoje, num dia rotineiro
nos afazeres na condução do mundo, os dois sóis foram surpreendidos com uma
nova situação que levou Passageiro a terríveis constatações, gritando desolado.
— Tô perdido! Estou
tendo sudorese, calafrios só em pensar... O que está acontecendo? Sinto-me
exaurido, minhas irradiações não estão conseguindo chegar à crosta do planeta. Não,
não! Será o meu declínio, minha impotência? Minha vida está um caos. Não sei o
que fazer.
— Era de se esperar — Disse Caridade que voltou a tecer seus
fios, agora fosforescentes.
— La vem você tirar proveito e jogar culpa em mim.
— Mas, é claro. Seus raios não conseguem ultrapassar a
fuligem na atmosfera de Gaia, a ganância desenfreada que você alimentou durante
milênios apresenta agora seu resultado, mas tudo isso está com os dias
contados.
— Não venha me colocar inculcações, deve ser um outro sol
que está se intrometendo entre nós, extremamente cruel.
— Como sempre são os outros que são responsáveis pelo que
você causou. É bem típico dos egoístas. Você não se emenda. Agora a humanidade
está sob a ameaça do desequilíbrio ambiental, a mãe, a casa da humanidade, o
planeta pede socorro.
— Mas, as suas emanações também não chegarão lá. — retrucou
Passageiro — não sou só eu que estou perdido nesse pandemônio, nós estamos
perdidos.
— Não, você está perdido, o que eu semeie ao longo dos
séculos perdurará e será o recurso apropriado para resolver os problemas para o
reequilíbrio do planeta. Diante da eminência da destruição da humanidade os
ensinamentos que disseminei através dos grandes homens no decurso da história
servirão de solução para o encontro do equilíbrio. Enquanto seu trabalho que
visava à satisfação imediata, personalista, não é mais útil. Só existe uma
saída para Gaia pensar no outro.Trabalhei incessantemente para semear a noção
da auto sustentação da vida, para ser implantada a ideologia do amor. São eles
que me farão permanecer vivo.
— Quer dizer que esse é o começo do meu fim? Mas, um dia essa fuligem cessará e tornaremos
a nos digladiar.
— Sim, mas não como antes, sua evolução estelar não será
mais a mesma, sua força de atuação será reduzida.
FIM
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