Khrystal: Dona do Ritmo, Senhora do Palco
Dizer que o mundo é enorme e também ínfimo seria o começo da maioria dos meus textos, se alguma preocupação estética não me rondasse as letras. E seria assim, sobretudo, porque me parece cada vez mais verdade, especialmente quando se trata do meu encantamento com a música da cantora potiguar Khrystal.
Digo isso porque o mundo é mesmo ínfimo: no tocante à música, há gente fazendo trabalhos espetaculares em todos os cantos do mundo, também em todos os confins brasileiros. Ninguém precisa mais ser refém do que toca nas rádios ou na tevê para ouvir boa música. Nestes últimos tempos tenho me dedicado muito a bandas e músicos pouco conhecidos, mas de grande talento, o que me levou à musicalidade pernambucana, por exemplo: Siba, Tibério Azul, Júnio Barreto, Eddie, Igor de Carvalho e tantos outros; à psicodelia gaúcha de Bonifrate; às novidades do Sudeste como Cícero, Pélico e Silva; entre tantas outras coisas. E todos esses encontros tiveram em comum a minha casa, meu trabalho, o computador, fones de ouvido, etc., como se tudo isso estivesse ali no quintal.
Mas o mundo é também enorme. Tanto que demorei muito mais do que deveria para ver/ouvir quem estava à minha porta. Já ouvira falarem sobre Khrystal inúmeras vezes, de sua música, de sua presença. No entanto, as miudezas dos dias, do trabalho, da correria, da displicência, do acaso e de outras forças quaisquer não me permitiram alcançá-la. O momento crucial para decidir encontrar a música dessa singularíssima cantora foi sua primeira apresentação mágica no Teatro Avoante, em Currais Novos, quando ela fez a abertura para Kátia de França. Não pude ir ao show, mais um desencontro. No entanto, foram tantos os depoimentos de emoção, beleza, graça e outros tantos adjetivos de gente em quem confio plenamente pelo apurado gosto musical que finalmente compreendi: era hora de encontrá-la, hora de ouvir Khrystal.
Um amigo trouxe-me o disco Coisa de Preto, que Khrystal gravou já há algum tempo, com produção dela, Eduardo Pinheiro e Franklin Nogvaes, e o resultado não poderia ser diferente: Khrystal é impressionante, tanto pela qualidade de sua voz quanto pela escolha do que canta e pelo ar contemporâneo que deu à música tradicional, como os cocos. No disco estão composições que vão de Chico César a Elino Julião, passando por Guinga – que também faz duas lindas participações como violonista – e Aldir Blanc. O disco é coeso, sempre em alto nível, mas algumas faixas sobressaem com ainda mais força, o caso de “Sem Ganzá Não É Coco”, de Chico César; “Coco do M”, de Zé do Brejo e Jacinto Silva; e a quentíssima “Forró da Coreia”, de Elino Julião e Oliveira Batista. Nessas faixas Khrystal areja a musicalidade do coco e do folclore nordestino. Mas, que fique claro: não se trata de um disco de música folclórica: Coisa de Preto é um disco contemporâneo, que flerta com o pop e até com o blues, mas sem abandonar o tempero local. Aliás, é isso o que o torna único: sua forma de lidar com a tradição sem se tornar escravo dela ou rechaçá-la.
Uma coisa é certa: ouvir Khrystal é uma experiência mais que interessante: é confortante, é de dar orgulho e é extremamente prazerosa. Música para ouvir, para sentir, pensar e dançar: Música. No entanto, é preciso ver Khrystal subir ao palco para compreendê-la em toda sua dimensão, porque o palco é sua casa e o público é seu séquito. E tive a chance de o fazer em pleno Teatro Avoante, em Currais Novos, que vi ser construído por João Antônio – da maneira mais visceral que se pode utilizar para erguer uma “casa” – onde ela havia se apresentado antes: um lugar que respira cultura e ousadia.
Antes de Khrystal aparecer, o poeta Antônio Francisco, certamente um dos maiores cordelistas vivos deste país, abriu caminho com seus versos. A moça entra em cena como o vento nordeste e arrasta o que está pela frente: flerta com seu público e o seduz, mexe com suas emoções e faz com que seus expectadores venham comer em sua mão (“Você vai comer na minha mão se lambuzar e lamber o prato”, de Comer na Mão, de Chico César). A energia de Khrystal é grandiosa e flui por cada centímetro de plateia, que a assiste e pactua com ela, que dança, atua, brilha (natural para quem carrega esse nome) e faz se erguer quem a contempla.
“Comer na Mão e Quero Ganzá”, de Chico César, um par de canções de Flávio José e outras de Elino Julião põem fogo por onde Khrystal dança. “Sete Cantigas Para Voar”, de Vital Farias, garante um tom sublime que nos permite compreender a delicadeza guardada sob a força de sua voz, numa apresentação de momentos grandiosos. Apoiada por uma banda afinadíssima e que compactua do mesmo transe em que a cantora se encontra – em poucos lugares pode-se ter a oportunidade de ouvir um baterista e um percussionista tão bons tocando juntos – o público a cativa e recebe de volta o carinho.
Khrystal brilha, reluz, transparece e outros trocadilhos que seu nome permite e justifica. Ouvi-la e vê-la são uma experiência verdadeiramente fabulosa para quem gosta de música, para quem espera da tradição nordestina algo mais que uma leitura anacrônica do universo. Neste show, batizado “Caldeirão dos Mitos”, em que homenageia Luiz Gonzaga, é possível perceber uma música nordestina revisitada, reinventada, mas cuja essência está lá guardada, transcendente. Luiz Gonzaga certamente agradece e nós, público mesmerizado pela fortíssima presença de Khrystal, louvamos.
Théo Alves
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